Podemos responder a esta pergunta com uma história árabe.
Um homem fugia de uma
quadrilha de bandidos violentos quando encontrou, sentado na beira do
caminho, o profeta Maomé. Ajoelhando-se à frente do profeta, o homem
pediu ajuda: essa quadrilha quer o meu sangue, por favor, proteja-me!
O profeta manteve a calma e respondeu: continue a fugir bem à minha frente, eu me encarrego dos que o estão perseguindo.
Assim que o homem se
afastou correndo, o profeta levantou-se e mudou de lugar, sentando-se na
direção de outro ponto cardeal. Os sujeitos violentos chegaram e,
sabendo que o profeta só podia dizer a verdade, descreveram o homem que
perseguiam, perguntando-lhe se o tinha visto passar.
O profeta pensou por um
momento e respondeu: falo em nome daquele que detém em sua mão a minha
alma de carne: desde que estou sentado aqui, não vi passar ninguém.
Os perseguidores se conformaram e se lançaram por um outro caminho. O fugitivo teve a sua vida salva.
O leitor entendeu, não?
Não?
Explico.
A moral incorpora as
regras que temos de seguir para vivermos em sociedade, regras estas
determinadas pela própria sociedade. Quem segue as regras é uma pessoa
moral; quem as desobedece, uma pessoa imoral.
A ética, por sua vez, é a
parte da filosofia que estuda a moral, isto é, que reflete sobre as
regras morais. A reflexão ética pode inclusive contestar as regras
morais vigentes, entendendo-as, por exemplo, ultrapassadas.
Se o profeta fosse apenas
um moralista, seguindo as regras sem pensar sobre elas, sem avaliar as
consequências da sua aplicação irrefletida, ele não poderia ajudar o
homem que fugia dos bandidos, a menos que arriscasse a própria vida. Ele
teria de dizer a verdade, mesmo que a verdade tivesse como consequência
a morte de uma pessoa inocente.
Se avaliarmos a ação e as
palavras do profeta com absoluto rigor moral, temos de condená-lo como
imoral, porque em termos absolutos ele mentiu. Os bandidos não podiam
saber que ele havia mudado de lugar e, na verdade, só queriam saber se
ele tinha visto alguém, e não se ele tinha visto alguém “desde que
estava sentado ali”.
Se avaliarmos a ação e as
palavras do profeta, no entanto, nos termos da ética filosófica,
precisamos reconhecer que ele teve um comportamento ético, encontrando
uma alternativa esperta para cumprir a regra moral de dizer sempre a
verdade e, ao mesmo tempo, ajudar o fugitivo. Ele não respondeu
exatamente ao que os bandidos perguntavam, mas ainda assim disse
rigorosamente a verdade. Os bandidos é que não foram inteligentes o
suficiente, como de resto homens violentos normalmente não o são, para
atinarem com a malandragem da frase do profeta e então elaborarem uma
pergunta mais específica, do tipo: na última meia hora, sua santidade
viu este homem passar, e para onde ele foi?
Logo, embora seja
possível ser ético e moral ao mesmo tempo, como de certo modo o profeta o
foi, ética e moral não são sinônimas. Também é perfeitamente possível
ser ético e imoral ao mesmo tempo, quando desobedeço uma determinada
regra moral porque, refletindo eticamente sobre ela, considero-a
equivocada, ultrapassada ou simplesmente errada.
Um exemplo famoso é o de
Rosa Parks, a costureira negra que, em 1955, na cidade de Montgomery, no
Alabama, nos Estados Unidos, desobedeceu à regra existente de que a
maioria dos lugares dos ônibus era reservada para pessoas brancas. Já
com certa idade, farta daquela humilhação moralmente oficial, Rosa se
recusou a levantar para um branco sentar. O motorista chamou a polícia,
que prendeu a mulher e a multou em dez dólares. O acontecimento provocou
um movimento nacional de boicote aos ônibus e foi a gota d’água de que
precisava o jovem pastor Martin Luther King para liderar a luta pela
igualdade dos direitos civis.
No ponto de vista dos
brancos racistas, Rosa foi imoral, e eles estavam certos quanto a isso.
Na verdade, a regra moral vigente é que estava errada, a moral é que era
estúpida. A partir da sua reflexão ética a respeito, Rosa pôde
deliberada e publicamente desobedecer àquela regra moral.
Entretanto, é comum
confundir os termos ética e moral, como se fossem a mesma coisa. Muitas
vezes se confunde ética com espírito de corpo, que tem tudo a ver com
moral mas nada com ética. Um médico seguiria a “ética” da sua profissão
se, por exemplo, não “dedurasse” um colega que cometesse um erro grave e
assim matasse um paciente. Um soldado seguiria a “ética” da sua
profissão se, por exemplo, não “dedurasse” um colega que torturasse o
inimigo. Nesses casos, o tal do espírito de corpo tem nada a ver com
ética e tudo a ver com cumplicidade no erro ou no crime.
Há que proceder
eticamente, como o fez o profeta Maomé: não seguir as regras morais sem
pensar, só porque são regras, e sim pensar sobre elas para encontrar a
atitude e a palavra mais decentes, segundo o seu próprio julgamento.
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