Futebol
O destino dos doze corintianos presos na Bolívia
Prisão preventiva pode se
estender por até três anos pelas leis bolivianas; outros 88 brasileiros
estão em situação similar no país vizinho
Laryssa Borges, de Brasília
O ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, vai nesta
quinta-feira ao Senado apresentar explicações sobre um tema que tem
tirado o sono da diplomacia brasileira: a permanência de doze torcedores
do Corinthians presos há 42 dias na cidade boliviana de Oruro, a 230 km
de La Paz, acusados de participação na
morte do garoto Kevin Espada,
de 14 anos, atingido por um sinalizador em um jogo da Copa Libertadores
da América. O Itamaraty enfrenta forte pressão tanto de parlamentares
quanto fora do Congresso para negociar a libertação do grupo, submetido
às leis rígidas sobre prisão preventiva no país vizinho.
Nesta quinta, mais do que falar das queixas de maus tratos na
carceragem de Oruro, Patriota terá a oportunidade de esclarecer que os
corintianos estão enredados pelo arcaico sistema judicial da Bolívia, um
país tão bem tratado pelo governo brasileiro nos últimos anos. O longo
tempo de prisão preventiva não é uma novidade em território boliviano:
outros 88 brasileiros estão presos na cidade de Santa Cruz de La Sierra
em situação similar.
A legislação do país vizinho estabelece a marca de impressionantes três
anos como prazo máximo para prisões preventivas, limite que nem sempre é
respeitado: pelo menos dez brasileiros estão encarcerados na Bolívia há
mais tempo do que isso. Em novembro do ano passado, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos recebeu o alarmante diagnóstico de
que o sistema prisional boliviano é um dos mais retrógrados da América
Latina. O uso indiscriminado da prisão preventiva pelo Judiciário da
Bolívia chegou a tal ponto que atualmente 84% da população carcerária do
país é formada por detentos nesta condição.
Depois de constatar altos índices de insegurança dos cidadãos
bolivianos entre os anos de 2005 e 2010, o governo decidiu promover
reformas judiciais, endurecendo as penas e limitando os casos em que
acusados poderiam responder aos processos em liberdade. A consequência
imediata foi o crescimento exponencial dos índices de prisões
cautelares. Em dezembro de 2011, depois de apenas um ano de vigência das
regras mais rígidas de liberação de presos, a população carcerária na
Bolívia aumentou 22% em relação a 2010.
Um estudo elaborado por entidades como a Due Process of Law Foundation e
o Instituto de Estudos Legais e Sociais do Uruguai e enviado a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, afirma que o cenário boliviano
provoca “violações de direitos humanos às pessoas privadas de liberdade”
e agrava as “desumanas condições de detenção e os índices de violência
carcerária”.
O código penal da Bolívia é claro na determinação da prisão preventiva a
estrangeiros. Sem trabalho, família ou residência fixa em território
boliviano e a partir de um documentado histórico de fugas pela fronteira
com o Brasil, a regra é que todos os suspeitos, de traficantes de
drogas a acusados de homicídios, sejam levados imediatamente para a
cadeia. De acordo com diplomatas que acompanham o caso dos torcedores
corintianos, a Justiça boliviana é implacável com suspeitos que não
tenham familiares ou vínculos de trabalho no país.
“Será que três anos é um tempo razoável para que a pessoa tenha de
esperar uma possível condenação? A partir do momento em que passa três
anos em uma prisão, a pessoa está condenada antes mesmo da sua defesa”,
avalia a professora de Direito Internacional da Universidade de Brasília
(UnB), Inez Lopes. “Se a prisão preventiva chega a dois, três anos, na
verdade já está se cumprindo pena antes da condenação”, diz.
“É extremamente exagerado esse período de até três anos para uma prisão
preventiva, principalmente se compararmos com a nossa lei”, completa o
advogado Octávio Aronis, especialista em Direito Penal e Direito
Internacional. No Brasil, a regra costurada a partir da jurisprudência é
a de que o prazo de prisão processual durante a instrução não pode
ultrapassar 81 dias, embora a realidade carcerária nacional seja repleta
de exemplos de desrespeito às normas.
Carceragem –
Os 12 torcedores corintianos, ligados às torcidas Pavilhão Nove e
Gaviões da Fiel, estão presos desde o dia 20 de fevereiro. Na
carceragem, dois calabouços são destino certo para os mais rebeldes. As
condições locais reproduzem as mazelas da superlotação: 1.500 homens e
mulheres, condenados ou não, disputam cada palmo do presídio construído
para abrigar apenas 200 deles. Em celas comuns, até para dormir os
recém-chegados têm de pagar uma taxa: 200 bolivianos, ou pouco mais de
55 reais, são repassados aos “chefes da cela”.
Pelo Código de Procedimento Penal da Bolívia, as pessoas detidas
preventivamente devem ser levadas a estabelecimentos especiais
diferentes dos utilizados por presos já condenados ou devem, pelo menos,
ser mantidas em celas diferentes dos detentos já julgados. A lei é
ignorada cotidianamente pelo Judiciário boliviano. Com o caso dos
torcedores corintianos não será diferente.
Corrupção – Os torcedores brasileiros já foram
indiciados por homicídio, mas as audiências de instrução do processo
tramitam morosamente na promotoria local. Eles ainda não deram sua
versão oficial sobre o episódio que levou à morte de Kevin e, quando
tiverem de comparecer ao Palácio da Justiça para depoimentos, vão se
deparar com a absurda situação de ter de pagar propina a cada etapa do
processo judicial. O peculiar método de trabalho do Judiciário
boliviano, revelado por diplomatas e parlamentares brasileiros ao site
de VEJA, prevê que os corintianos possam ter de arcar, por exemplo, com
uma taxa de 800 a 1 000 dólares em propina para a contratação de um
advogado que tente obter uma sentença mais ágil.
Os preços são negociáveis, mas a tabela do mercado paralelo de favores
judiciais também fixa pagamento de 60 a 100 dólares para movimentos e
notificações nos processos, taxas para escolta policial, propina para
utilizar o carro da polícia para comparecer a um depoimento e até o
desembolso de cerca de 100 dólares para que o acusado possa ir à
audiência de seu próprio processo. Se, por qualquer razão, as audiências
forem canceladas, a propina obviamente não é reembolsada. Sem
comprovantes oficiais da despesa, os corintianos tampouco podem pedir
ressarcimento ao serviço consular.
A diplomacia brasileira já bateu de frente com a corrupção
institucionalizada no Judiciário boliviano, mas as autoridades locais se
eximem de responsabilidade. “O caso dos torcedores corintianos é
extremamente complicado. O sistema prisional é o caos e a justiça não
garante mecanismos de defesa”, diz o deputado Walter Feldman (PSDB-SP),
que visitou os corintianos em uma rodada de negociações na Bolívia. “Os
presos estão em condição degradante. Se depender da justiça de Oruro, o
caso fica mais complicado”, afirma o senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES),
que foi à Bolívia para acompanhar o caso.
Além do possível risco de prisão preventiva abusiva e de extorsão
generalizada em cada movimentação processual, a promotora Abigail Saba,
responsável pela investigação em Oruro, também tem papel de protagonista
no destino dos doze torcedores brasileiros. Até agora, o governo
boliviano sequer requisitou formalmente o depoimento em que um
corintiano menor de idade confessa
ter disparado o sinalizador que matou Kevin Espada. Saba ignorou um
protocolo diplomático no pedido que encaminhou para ter acesso ao
conteúdo do depoimento do menor e fez um pedido fora dos padrões
internacionais. O Ministério de Relações Exteriores brasileiro teme que,
nos moldes da solicitação da promotora, a prova possa ser declarada
nula pelo juiz do caso.
Abigail Saba, que suspeita que o menor assumiu a culpa para
livrar um adulto de punição,
até agora também não providenciou uma perícia nos vídeos que registram o
momento exato em que o sinalizador é disparado no jogo entre
Corinthians e San José. Desde o dia 12 de março ela tem em suas mãos
dois DVDs com o depoimento do menor, análises do perito Nelson Massini,
professor de medicina legal da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), feitas em imagens do dia do acidente e outros vídeos informais
de um jornalista que cobria o jogo. Mas até o momento nada foi feito com
a documentação.
O motivo do novo entrave burocrático é prosaico: a empresa responsável
pelas perícias locais rescindiu o contrato em 31 de dezembro por falta
de pagamento. Com vídeos e documentos por ora sem serventia, a defesa
dos torcedores brasileiros acredita que a promotora possa alegar que a
ausência de perícia desqualifica a prova mais evidente de uma possível
inocência dos corintianos.
Indenização – Depois de encontros com autoridades
diplomáticas e representantes do governo boliviano, interlocutores que
acompanham o caso dos corintianos, diante das sucessivas provas de
morosidade e burocracia, chegaram à conclusão de que apenas uma
negociação de caráter mais político poderia agilizar pelo menos a
concessão de liberdade provisória aos torcedores. Nas negociações pela
libertação dos brasileiros, surgiu a proposta de que o pagamento de uma
pesada indenização à família de Kevin, independentemente da conclusão do
processo judicial, poderia sinalizar boa vontade da torcida do
Corinthians e ajudar na flexibilização da prisão preventiva.
A hipótese de indenização antecipada esbarra, porém, na velha
engrenagem de corrupção. Os advogados que defendem os corintianos
acreditam que, diante do cenário consolidado de cobrança de propina para
cada movimentação processual, o pagamento à família do menino morto
acabaria inflacionado e não ajudaria na libertação dos torcedores. Nos
corredores da promotoria de Oruro, autoridades chegaram a estimar ser
necessária uma indenização de 5 milhões de reais, mais do que o dobro da
provável bilheteria do jogo entre Brasil e Bolívia, que foi agendado
para 6 de abril e terá parte da renda revertida para a família do
menino.
Questão política – Entre 21 de fevereiro, um dia após a
prisão dos doze corintianos, e o dia 26 de março, foram enviados vinte
diplomatas e agentes consulares brasileiros a Oruro para acompanhar o
caso. No último dia 24, o próprio embaixador Marcel Biato foi à cidade
onde os torcedores estão presos. O ministro de Relações Exteriores,
Antonio Patriota, chegou a conversar com o presidente boliviano, Evo
Morales, sobre o futuro dos corintianos, e nos últimos dias o embaixador
da Bolívia no Brasil, Jerjes Justiano Talavera, foi convocado ao
Itamaraty para explicar a situação dos brasileiros.
Sem soluções a curto prazo, autoridades que acompanham o impasse
atribuem a demora na libertação dos torcedores a um episódio muito mais
complicado: o asilo concedido pela embaixada brasileira em La Paz ao
senador oposicionista Roger Pinto Molina. Molina está na embaixada do
Brasil desde maio de 2012 após alegar ser perseguido pelo governo. Parte
da família do parlamentar conseguiu fugir para o estado do Acre.
Oficialmente, o governo de Evo Morales afirma a autoridades brasileiras
não poder interferir no Poder Judiciário em favor dos corintianos, mas o
fantasma do mal resolvido asilo a Molina paira sobre as negociações
envolvendo os torcedores.
Enquanto se desenrolam as negociações sobre relaxamento de prisão ou
sobre como lidar com os futuros pedidos de propina, Joselita Maria
Neves, mãe de Fábio Neves Domingos, presidente da torcida organizada
Pavilhão Nove e um dos doze presos na Bolívia, acompanha com apreensão o
futuro incerto do filho. Fábio tem sofrido com as condições precárias
de higiene na penitenciária, ainda não conseguiu se adaptar aos efeitos
da altitude na Bolívia e tem tido crises frequentes de bronquite
alérgica. “Falo todos os dias com o Fábio. Ele fala como um filho fala
para mãe: 'está tudo bem'. Mas eu sei que não está tudo bem. O Fábio é
quem sustenta a casa, aluguel, compras, tudo. Agora, sem ele, só Deus
sabe. Não está fácil”, diz.
(Com reportagem de Marcela Mattos e Jean-Philip Struck)