Memória veja
Morre Margaret Thatcher, ícone de ferro do liberalismo
Primeira-ministra da
Grã-Bretanha por quase 12 anos, ela encolheu o governo e recuperou a
prosperidade do país com uma receita admirada em todo o mundo
Os soviéticos a apelidaram de “Dama de Ferro”. O ex-presidente
americano Ronald Reagan a chamou de “o melhor homem da Inglaterra”. O
socialista francês François Mitterand a definiu por seus “olhos de
Calígula e lábios de Marilyn Monroe”. Na ficha de seleção para um
emprego, ela foi rejeitada por ser “teimosa, obstinada e perigosamente
dona de opiniões próprias”. Margaret Thatcher, primeira-ministra da
Grã-Bretanha que mais tempo permaneceu no cargo no século passado,
morreu nesta segunda-feira, aos 87 anos, deixando um papel bem definido
na história: o de líder da revolução liberal que, na década de 1980,
desmontou programas sociais deficitários, cortou impostos e gastos
públicos, privatizou estatais perdulárias e tirou da paralisia a
economia britânica para, depois, se espalhar pelo mundo.
A causa da morte da ex-premiê, segundo seu porta-voz, lorde Bell, foi
um derrame cerebral. Ela já havia deixado a vida pública em 2002 por
causa de um pequeno derrame, e sofreu vários outros depois deste. “É com
grande tristeza que Mark e Carol Thatcher anunciaram que sua mãe,
baronesa Thatcher, morreu em paz após um derrame nesta manhã. Um
comunicado será anunciado mais tarde”, afirmou Bell.
Os pequenos derrames dos últimos anos lhe deixaram sequelas, como
confusões ocasionais e perdas de memória. Seu estado de saúde estava se
deteriorando desde então, e ela chegou a sofrer de demência. Segundo sua
filha, Carol, em suas crises, Thatcher tinha dificuldades em terminar
suas frases e esquecia que seu marido, Denis Thatcher, morreu em 2003. A
morte de seu mais próximo confidente e companheiro por 50 anos
intensificou seu isolamento do mundo. A última vez em que ela foi
internada foi em dezembro de 2012, quando passou por uma cirurgia na
bexiga.
Primeira mulher a chefiar um governo parlamentar na história da Europa,
Thatcher ficou onze anos e meio no poder, de 1979 a 1990, tempo mais do
que suficiente para os princípios que defendia (menos governo, menos
despesas e independência em relação à União Europeia) se fixarem
profundamente no modo de vida britânico. Vinte anos depois do fim de seu
governo, o “thatcherismo” continua tão atual na Grã-Bretanha quanto a
monarquia, o peixe com batata frita e a cerveja quente dos pubs – mais
do que uma convicção política, é uma instituição nacional.
Em três décadas de carreira política, ela lutou contra a intervenção do
estado na economia e combateu a inflação. Eleita primeira-ministra em
1979, fez a taxa cair de um pico de 27% para 2,5% seis anos depois.
Privatizou as indústrias estatais de petróleo e gás, aeroportos e
companhias aéreas, telefone e energia elétrica, estimulando o
crescimento econômico mesmo com o aumento do desemprego e criando um
paradigma de competitividade até hoje seguido no planeta. Sua receita
para recuperar a economia incluiu a crença de que sindicatos com muito
poder político estrangulavam as empresas em nome de interesses
eleitorais. Com isso em mente, Thatcher enfrentou líderes sindicais,
retirou privilégios fiscais das organizações trabalhistas e enfrentou
greves que duraram mais de um ano, até vencê-los.
Vencer, afinal, era sua especialidade. Na democracia mais antiga do
planeta, ganhou três eleições consecutivas para a chefia do governo –
algo até então inédito, repetido depois por Tony Blair. Seu primeiro
triunfo nas urnas veio aos 33 anos, quando elegeu-se pela primeira vez
para o Parlamento pelo Partido Conservador. Em 1970, quando o partido
derrotou os trabalhistas e voltou ao poder com o premiê Edward Heath,
foi nomeada ministra da Educação. Quatro anos depois tornou-se a
primeira mulher a ganhar a liderança do partido, passo que a conduziu ao
cargo de premiê após vencer as eleições gerais de 1979. A década
seguinte trouxe seu primeiro desafio além das fronteiras da
Grã-Bretanha: a
invasão das Ilhas Malvinas
pela Argentina do ditador Jorge Videla em 1982. Thatcher ouviu os
chefes das Forças Armadas e não titubeou. No campo de batalha, os
soldados britânicos arrasaram os argentinos e
recuperaram a soberania sobre o arquipélago em dois meses e meio.
Nas relações exteriores, Thatcher cultivou uma estreita relação
política e pessoal com o então presidente dos EUA, Ronald Reagan. A
defesa do livre mercado era o princípio em comum e a luta contra
comunismo selou a aliança. Curiosamente, foram os inimigos soviéticos
que criaram a imagem de “mulher forte” que Thatcher incorporou. Ainda em
1976, três anos antes de ela se tornar primeira-ministra, o jornal
Estrela Vermelha,
publicado pelo Exército soviético, chamou-a de “Dama de Ferro” ao
comentar um discurso de Thatcher sobre a Otan, a aliança militar do
Atlântico Norte. Com ironia, ela acabou usando a seu favor o que era
para ser uma afronta sexista: “Estou aqui diante de vocês com meu
vestido de gala de seda vermelha, meu rosto levemente maquiado e meu
cabelo gentilmente escovado, a Dama de Ferro do mundo ocidental. Uma
guerreira da Guerra Fria”, disse em outro discurso. “Sou esse tipo de
coisa? Sim, se é assim que querem interpretar minha defesa dos valores e
liberdades fundamentais do nosso modo de vida”.
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Margaret Thatcher em 1980: aclamada em convenção do Partido Conservador
Dona de casa – Transformar o que muitos podiam ver
como ponto fraco em argumentos a seu favor foi algo que Thatcher dominou
desde o início de sua vida pública. Numa época em que a maioria das
mulheres era destinada apenas a casar, criar uma família e cuidar de uma
casa, ela jamais se apresentou como feminista nem rejeitou a ideia de
que as mulheres deviam ser donas de casa. Pelo contrário, em toda
campanha eleitoral, fazia questão de aparecer fazendo compras no
supermercado e gostava de ser fotografada fazendo tarefas domésticas.
“Qualquer mulher que entende os problemas de administrar uma casa estará
próxima de entender os problemas de administrar um país”, declarou.
Para seu biógrafo, Charles Moore, nesse ponto nada podia ser mais
equivocado do que a famosa frase de Ronald Reagan – “Ela é o melhor
homem da Inglaterra” – porque Thatcher considerava o sexo feminino
superior. Não à toa, uma de suas frases mais conhecidas é: “Em política,
se você quiser que algo seja dito, peça a um homem. Se quiser algo
feito, peça a uma mulher”.
Esse traço de sua personalidade foi plantado por seu pai, Alfred
Roberts, dono de duas mercearias na pequena cidade de Grantham, no leste
da Inglaterra, onde Margaret Hilda Roberts – nome de batismo – nasceu
em 13 de outubro de 1925. “Nunca deixe os outros dizerem o que você deve
fazer”, era um dos conselhos paternos resgatados em suas memórias. O
pensamento independente está na raiz de suas escolhas profissionais:
após terminar o colegial, Thatcher foi estudar na Universidade de Oxford
aos 17 anos. Era a primeira da família a entrar para o ensino superior e
se formou em química, algo então pouco usual para uma mulher – anos
depois, estudaria direito e se tornaria advogada. Com o diploma de
cientista, mudou-se para Colchester, a cerca de 80 quilômetros de
Londres, e foi trabalhar em uma indústria de plásticos, época em que
iniciou sua carreira política ao entrar para a Associação Conservadora
da cidade. Após se aproximar de lideranças locais do Partido Conservador
e conquistá-las com sua capacidade de debate, candidatou-se a uma vaga
no Parlamento, mas foi derrotada em suas duas primeiras tentativas. Suas
atividades políticas levaram-na a conhecer o rico empresário Denis
Thatcher, de quem adotou o sobrenome após o casamento, em 1951. Dois
anos depois da união, ela deu à luz um casal de gêmeos, Carol e Mark,
seus únicos filhos. Por 52 anos, viveu com Denis, de quem ficou viúva em
2003.
Troca da guarda – O fim da era Thatcher
está diretamente ligado à ascensão da União Europeia, que dividiu o
Partido Conservador, e ao desgaste de sua imagem perante a opinião
pública britânica após mais de uma década de governo. Ainda assim, ela
não perdeu nenhuma eleição antes de deixar a liderança dos
conservadores. Preferiu renunciar em 1990, após vencer a disputa pela
chefia do partido por uma margem estreita, que obrigava a realização de
um segundo turno. Antes mesmo de colocar à prova o favoritismo dos
trabalhistas na eleição seguinte, seu discurso separatista da União
Europeia a derrubou do governo e ela foi sucedida por John Major. Em seu
discurso de renúncia, caiu atirando contra os trabalhistas: "Eles
querem uma Europa de subsídios, uma Europa de restrições socialistas,
uma Europa de protecionismo".
Por quase dois anos, a Dama de Ferro continuou na Câmara dos Comuns,
até ser nomeada para a Câmara dos Lordes com o título de baronesa.
Durante algum tempo, continuou criticando os adversários e dando
discursos, palestras e entrevistas pelo mundo – numa delas,
defendeu suas ideias nas páginas de VEJA.
Até que uma série de pequenos derrames e falhas de memória a afastaram
da vida pública em 2002, por recomendação médica. Seis anos depois, a
filha Carol revelou que a mãe sofria de demência. A doença havia sido
diagnosticada em 2000 e se agravou pouco a pouco.
Seu biógrafo Charles Moore relata um encontro revelador entre a líder
aposentada e um menino de sete anos – filho de Moore. Sentado em um sofá
diante de Thatcher, o garoto pergunta: “Você gostou de ser
primeira-ministra?”. Sem se mostrar surpresa, ela responde: “Bem,
tivemos a chance de tomar decisões importantes e melhorar a vida do
país, então, sim, gostamos muito”. O entrevistador não se dá por
satisfeito: “Você fez alguma lei boa?”. Thatcher resume o próprio
legado: “Sim, fizemos! Fizemos a Grã-Bretanha mais forte na defesa,
reduzimos o poder dos sindicatos e cortamos impostos, de modo que as
pessoas pudessem ficar com mais do que ganham. E se as pessoas ficam com
uma parcela maior do que ganham, elas ganham mais”.